When my Brazilian or American friends come to visit me for
the first time, they look at my living room and sometimes want to know how come
I have a blazon from the Brazilian Consulate. I explain that in the 1940s, my
grandfather was the Brazilian consul for Bolivia. After he stopped being a
consul, somehow the blazon ended up in the garage of the house my mother
inherited from him. For many years it stayed there, lost among some odds and
ends, until the day when I asked my mother if I could have it. Since then, the blazon
has been traveling with me, decorating any place I happen to live.
I am always happy to tell this story because it has a
beginning, middle, and an end. People might find it intriguing, but they can
understand it. Some of the other stories from my past are not so easy to
believe, especially for my American friends. This is because I was born in
Corumbá, a
small town in Brazil, on the border with Bolivia. A town that even people from
other Brazilian regions consider exotic.
A town where the sounds of Paraguayan polkas fill the air, the smells of
Bolivian saltenhas assault our noses pleasantly, and the Paraguay River,
surrounded by the endless swamp, makes us ponder our mortality, hinting of
unexpected dangers below the waters while giving an illusion of peace.
The life of the town and its surroundings is deeply
influenced by the rain. During the rainy season, the swamp swells and the
farmers take their cattle to the high lands. In town, strong rains come and go
unexpectedly, leaving behind broken trees and leaking roofs. Visiting my
hometown in the beginning of the year, I went out one night and, on my way
back, was caught in the middle of a storm, getting soaked in the few minutes
that it took me to leave the car and open the garage door. The rain washed my
soul. I laughed. For a minute I was an 8 year old girl again, splashing in a
small bathtub that my mother used to put in the patio in weather like that, so
we kids could enjoy the warm rain tickling our body, playing with us like a
teasing friend.
The life of the town is governed by the dogs. The human
beings have the illusion that they are in charge, but it is the stray dogs,
roaming from street to street, that decide if we are going to sleep or not. They
are countless. During the day they seem to disappear, maybe napping, maybe just
resting, but in the evening they parade through town in groups, upsetting the other
dogs that can't join them because they are fenced inside the houses, making
these dogs bark in a useless and furious protest. The dogs kept in the
backyards, for protection of their owners, also bark at any strange noise
coming from anywhere. The nights are filled with the sounds of barking,
sometimes reassuring, sometimes menacing, always reminding us that the dogs are
the kings of this place.
My husband told me last month that he spoke with a woman in
Arizona who had taken her two dogs to a kennel because the temperature in
Phoenix had reached 104 degrees Fahrenheit, and there was air conditioning in
the kennel. I laughed, thinking about the dogs in my hometown that endure high
temperatures on a daily basis and just walk back and forth on the streets,
drinking the warm water that comes from the faucets. I am sure that they
developed survival skills, like the people from Corumbá,
who seem unaffected by the heat or the mosquitoes that drive most visitors
totally crazy.
How can I explain all these things to my American friends,
used to air conditioning, heat in the winter, well-organized towns with dogs on
leashes, no children playing barefoot or diving in a river without supervision?
How can I explain the beauty of my town, the diversity of its inhabitants, the
colorful houses, the ease with which we go to Bolivia for lunch and come back
right away, the street markets where one can find everything from native herbs
to high fashion clothes made in the USA? Even for me, born in Corumbá and
coming from a generation of Corumbaenses, the town remains a mystery. It is
easier to tell the story of my grandfather’s blazon than to explain the
life I lived in that place where so many unusual things happen.
Corumbá is better left without a
rational explanation, so our imagination can define it the way our hearts
remember, the way it is engraved in our memories. Like a lover who comes in the
middle of the night to steal a kiss, leaving his beloved wondering, the
following morning, if that was just a dream.
O BRASÃO DO MEU AVÔ
Quando os meus amigos brasileiros ou americanos vêm me visitar pela primeira vez, olham a minha sala de estar e querem saber por que tenho um brasão do Consulado Brasileiro. Explico que, na década de 1940, meu avô era cônsul do Brasil na Bolívia. Depois que ele deixou de ser cônsul, o brasão acabou na garagem da casa que minha mãe herdou dele. Por muitos anos ficou lá, perdido entre outras coisas, até que perguntei a minha mãe se podia levá-lo. Desde então, o brasão viaja comigo, decorando minha casa em qualquer lugar onde eu esteja vivendo.
Fico sempre feliz de contar essa história porque tem um começo, meio e fim. As pessoas podem achá-la intrigante, mas conseguem entendê-la. Já algumas das outras histórias do meu passado, não são tão fáceis assim de explicar ou de entender, especialmente para os meus amigos americanos. Isso é porque eu nasci em Corumbá, uma cidade pequena do Brasil, na fronteira com a Bolívia. Uma cidade considerada exótica até mesmo por gente que vem de outras regiões brasileiras. Uma cidade onde os sons de polcas paraguaias enchem o ar, o cheiro de saltenhas bolivianas invadem agradavelmente nossas narinas, e o rio Paraguai, cercado pelo imenso pantanal, nos faz refletir sobre a nossa mortalidade, nos lembrando dos perigos que se escondem embaixo das suas águas e, ao mesmo tempo, criando uma ilusão de paz.
A vida da cidade e seus arredores é profundamente influenciada pelas chuvas. Durante a estação chuvosa, os fazendeiros levam seu gado para as terras altas. Na cidade, as chuvas fortes começam e acabam inesperadamente, deixando um rastro de árvores quebradas e goteiras nos telhados. Quando fui visitar a cidade no início do ano, saí uma noite e, na volta, fui pega no meio de uma tempestade, ficando encharcada nos poucos minutos que levei para sair do carro e abrir a porta da garagem. A chuva lavou a minha alma. Ri sozinha. Por um minuto voltei a ter 8 anos de idade, a ser uma menininha brincando na banheira de plástico que minha mãe colocava no pátio para que nós crianças aproveitássemos a chuva quente que fazia cócegas no nosso corpo, brincando conosco como uma amiga travessa.
A vida da cidade é governada pelos cachorros. Os homens e mulheres têm a ilusão de que estão no comando, mas são os cachorros vira-latas, andando de rua em rua, que decidem se vamos dormir ou não. Tem um montão deles. Durante o dia parecem desaparecer, talvez dormindo, talvez apenas descansando, mas à noite passeam pela cidade em grupos, perturbando os outros cachorros que não podem se juntar a eles porque estão presos dentro das casas, fazendo com que esses cachorros latam num protesto inútil e furioso. Os cachorros mantidos nos quintais, para a proteção de seus donos, também latem quando ouvem barulhos estranhos, vindo de qualquer lugar. As noites são povoadas pelos sons de latidos, às vezes reconfortantes, às vezes ameaçadores, sempre lembrando-nos que os cachorros são os reis do lugar.
No mês passado, meu marido me disse que estava conversando com uma americana do Arizona que tinha levado seus dois cachorros para um canil, porque a temperatura em Fenix havia chegado a 40 graus Celsius e o canil tinha ar condicionado. Eu ri, lembrando dos cachorros da minha cidade que resistem a altas temperaturas diariamente e continuam andando à toa pelas ruas, tomando água quente das torneiras. Tenho certeza de que desenvolveram algum mecanismo de sobrevivência, como o povo de Corumbá, que parece não ser afetado pelo calor ou pelos mosquitos que deixam a maioria dos visitantes meio malucos.
Como posso explicar todas essas coisas para os meus amigos americanos, acostumados com ar condicionado, aquecimento no inverno, cidades bem organizadas com cachorros presos com coleiras, sem crianças brincando descalças ou mergulhando nos rios sem supervisão? Como posso explicar a beleza da minha cidade, a diversidade de seus habitantes, as casas coloridas, a facilidade com a qual vamos almoçar na Bolívia e voltamos rapidinho, as feiras de rua onde se encontra de tudo, desde ervas nativas até roupas caras feitas nos EUA? Mesmo para mim, nascida em Corumbá e vindo de uma geração de Corumbaenses, a cidade permanece um mistério. É mais fácil contar a história do brasão do meu avô do que explicar a vida que vivi naquele lugar onde tantas coisas estranhas acontecem.
Quando os meus amigos brasileiros ou americanos vêm me visitar pela primeira vez, olham a minha sala de estar e querem saber por que tenho um brasão do Consulado Brasileiro. Explico que, na década de 1940, meu avô era cônsul do Brasil na Bolívia. Depois que ele deixou de ser cônsul, o brasão acabou na garagem da casa que minha mãe herdou dele. Por muitos anos ficou lá, perdido entre outras coisas, até que perguntei a minha mãe se podia levá-lo. Desde então, o brasão viaja comigo, decorando minha casa em qualquer lugar onde eu esteja vivendo.
Fico sempre feliz de contar essa história porque tem um começo, meio e fim. As pessoas podem achá-la intrigante, mas conseguem entendê-la. Já algumas das outras histórias do meu passado, não são tão fáceis assim de explicar ou de entender, especialmente para os meus amigos americanos. Isso é porque eu nasci em Corumbá, uma cidade pequena do Brasil, na fronteira com a Bolívia. Uma cidade considerada exótica até mesmo por gente que vem de outras regiões brasileiras. Uma cidade onde os sons de polcas paraguaias enchem o ar, o cheiro de saltenhas bolivianas invadem agradavelmente nossas narinas, e o rio Paraguai, cercado pelo imenso pantanal, nos faz refletir sobre a nossa mortalidade, nos lembrando dos perigos que se escondem embaixo das suas águas e, ao mesmo tempo, criando uma ilusão de paz.
A vida da cidade e seus arredores é profundamente influenciada pelas chuvas. Durante a estação chuvosa, os fazendeiros levam seu gado para as terras altas. Na cidade, as chuvas fortes começam e acabam inesperadamente, deixando um rastro de árvores quebradas e goteiras nos telhados. Quando fui visitar a cidade no início do ano, saí uma noite e, na volta, fui pega no meio de uma tempestade, ficando encharcada nos poucos minutos que levei para sair do carro e abrir a porta da garagem. A chuva lavou a minha alma. Ri sozinha. Por um minuto voltei a ter 8 anos de idade, a ser uma menininha brincando na banheira de plástico que minha mãe colocava no pátio para que nós crianças aproveitássemos a chuva quente que fazia cócegas no nosso corpo, brincando conosco como uma amiga travessa.
A vida da cidade é governada pelos cachorros. Os homens e mulheres têm a ilusão de que estão no comando, mas são os cachorros vira-latas, andando de rua em rua, que decidem se vamos dormir ou não. Tem um montão deles. Durante o dia parecem desaparecer, talvez dormindo, talvez apenas descansando, mas à noite passeam pela cidade em grupos, perturbando os outros cachorros que não podem se juntar a eles porque estão presos dentro das casas, fazendo com que esses cachorros latam num protesto inútil e furioso. Os cachorros mantidos nos quintais, para a proteção de seus donos, também latem quando ouvem barulhos estranhos, vindo de qualquer lugar. As noites são povoadas pelos sons de latidos, às vezes reconfortantes, às vezes ameaçadores, sempre lembrando-nos que os cachorros são os reis do lugar.
No mês passado, meu marido me disse que estava conversando com uma americana do Arizona que tinha levado seus dois cachorros para um canil, porque a temperatura em Fenix havia chegado a 40 graus Celsius e o canil tinha ar condicionado. Eu ri, lembrando dos cachorros da minha cidade que resistem a altas temperaturas diariamente e continuam andando à toa pelas ruas, tomando água quente das torneiras. Tenho certeza de que desenvolveram algum mecanismo de sobrevivência, como o povo de Corumbá, que parece não ser afetado pelo calor ou pelos mosquitos que deixam a maioria dos visitantes meio malucos.
Como posso explicar todas essas coisas para os meus amigos americanos, acostumados com ar condicionado, aquecimento no inverno, cidades bem organizadas com cachorros presos com coleiras, sem crianças brincando descalças ou mergulhando nos rios sem supervisão? Como posso explicar a beleza da minha cidade, a diversidade de seus habitantes, as casas coloridas, a facilidade com a qual vamos almoçar na Bolívia e voltamos rapidinho, as feiras de rua onde se encontra de tudo, desde ervas nativas até roupas caras feitas nos EUA? Mesmo para mim, nascida em Corumbá e vindo de uma geração de Corumbaenses, a cidade permanece um mistério. É mais fácil contar a história do brasão do meu avô do que explicar a vida que vivi naquele lugar onde tantas coisas estranhas acontecem.
É melhor evitar
qualquer explicação racional sobre Corumbá e deixar que nossa imaginação a
defina da maneira como nossos corações se lembram dela, do jeito que está
gravada nas nossas memórias. Como um amante que vem no meio da noite para
roubar um beijo, deixando sua amada se indagando, na manhã seguinte, se tudo
não passou de um sonho.
Photos: Bernadete Piassa
Bonito texto. Acho que tem muita coisa aí que merece ir pro livro...
ReplyDeleteQue livro, Valeria? Aquele que nao sai da gaveta?
DeleteOi, Dete:
ReplyDeleteVim agradecer sua visita e conhecer seu blog !
Gostei da história do brasão e de Corumbá que, como v. mesmo disse, é lugar exótico até para brasileiros, como são as regiões, Norte, Nordeste e Centro Oeste, do Brasil, para quem é do Sudeste como eu. As diferenças são enormes nesse mundo de Deus, e sempre surpreendem e encantam. Eu, carioca de nascimento, ainda me surpreendo - após 21 anos - com as diferenças que encontro na minha cidade do interior de Minas Gerais.
Beijo